INTRODUÇÃO
Deus criou o homem com uma dimensão espiritual e criou-o para usufruir da sua
plenitude. Desde o começo chamou-o para uma existência de comunhão com Ele. A
primeira palavra de Deus sobre o homem é a «vontade agraciante de Deus».
O objectivo do nosso trabalho é realçar a centralidade cristológica da doutrina do
pecado original. Trataremos de três pontos: Cristo como fundamento de toda
solidariedade humana; só a partir de Cristo conhecemos em radicalidade a
realidade do pecado; e o estado da justiça original. O nosso trabalho será
fundamentado praticamente em dois autores: J. L. Ruiz de la Penã e L. F. Ladaria.
1. Cristo como o fundamento de toda a solidariedade humana
Uma das dificuldades tradicionais consistia em colocar o pecado original como
anterior à cristologia e à soteriologia, ou seja, como aquela realidade
deformante da condição de imagem divina do homem, por causa da qual Cristo,
morrendo por nós, nos salva em sua páscoa. Com efeito, ao aceitar que o motivo
fundamental da encarnação é a redenção do pecado, a consequência lógica é que o
pecado se converte no centro, ou seja, na razão de ser da economia da salvação.
Uma visão assim reduz a salvação à sua dimensão de redenção e coloca a
realidade do pecado como «prévia» a Cristo. Nesta lógica, a solidariedade da
humanidade em Adão é anterior à solidariedade da humanidade em Cristo, o que
equivale a secundarizar a primazia da iniciativa da gratuidade salvífica de Deus,
a de nos tornar filhos em seu próprio Filho. A teologia actual, partindo da
redescoberta da criação em Cristo, coloca Cristo como o fundamento de toda a
solidariedade humana. E é de Cristo que Adão recebe o seu sentido pleno[1]. Como
afirma L. F. Ladaria[2]:
«Se tudo foi criado em Cristo e para Cristo, é difícil pensar nalguma dimensão
do amor de Deus e da sua graça que não esteja mediada por Ele, ainda antes da
sua encarnação. A graça concedida ao primeiro homem é, desde o primeiro
instante, graça de Cristo».
Adão
e Cristo são, portanto, «antepassados» do homem, cada um à sua maneira, sendo o
último o decisivo, pois é n´Ele que Adão, o homem, alcança a sua plenitude
filial, penalizando-se no amor. Se os homens descendem de um antepassado que
lhes transmite uma existência «segundo a carne» (Adão), mais profundamente
foram criados num outro antepassado que é também o seu futuro: Cristo no qual
são e tornam-se filhos de Deus. Muito mais do que dos seus inícios imperfeitos,
os homens dependem da plenitude que vem no fim. Cristo, o
«último» Adão é a realização daquela plenitude filial já anunciada aquando da
criação do homem em Cristo. «Último» enquanto realização escatológica daquela
promessa de comunhão divina, de divinização, inscrita desde o começo da criação,
já cristologicamente determinada porque acontecida pela mediação de Cristo[3].
2. Só a partir de Cristo conhecemos em radicalidade a realidade do pecado
É
à luz de Cristo que se pode entender em profundidade o significado dessa
realidade teologal chamada pecado original. Este não é só a transgressão de uma
lei do Criador, mas é, sobretudo, a resposta negativa ao amor de Deus que nos
quer entregar o seu Filho e nos chama à filiação com Ele e n´Ele. É na
revelação incondicional do amor de Deus aos homens em Cristo, que fica claro
qual é a dimensão abissal da recusa dos homens a esse amor. Muito mais do que
uma realidade compreendida como um acontecimento situado nas origens da
humanidade, o pecado original deve ser compreendido à luz da plenitude da
oferta do amor filial de Deus em Cristo. O ponto de partida do esclarecimento
sistemático da doutrina do pecado original é, portanto, cristológico. É a
partir da solidariedade dos homens em Cristo que se esclarece a solidariedade
dos homens em Adão, ou seja, no pecado. É a centralidade de Cristo e a
necessidade que d´Ele temos que constitui o núcleo decisivo do pensamento
agostiniano sobre o pecado original e que está, igualmente, na base da
formulação tridentina. Só a partir de Cristo conhecemos em radicalidade a realidade
do pecado; só a partir da solidariedade com Cristo, cabeça da Igreja e
primogénito de entre os mortos, podemos entender o pecado como tudo aquilo que
rompe e desagrega o homem dessa solidariedade filial e fraterna. A
solidariedade no mal só pode entender-se a partir da solidariedade na graça
filial em Cristo. Se
no Novo Testamento aparece com clareza a ideia de uma universalidade no pecado,
é unicamente no contexto da reconciliação que a todos alcança (cf. Rm 5,12-21;
2 Cor 5,18-21; Ef 2,3; Gal 3,22). Quer dizer que a própria ideia da
solidariedade no mal pode entender-se com radicalidade unicamente se caímos na
conta da relevância da vocação à união em Cristo[4].
A
solidariedade dos homens no bem e no mal tem as suas raízes profundas na nossa
condição de seres sociais. O bem e o mal que cada um realiza têm,
inevitavelmente, repercussões sociais. Enquanto ser social, há no homem um
coeficiente de destino não-proposto, não querido, prévio à sua opção social.
Enquanto ser pessoa, o homem pode e deve confrontar-se livremente com o seu
destino, para assumi-lo ou para recusá-lo. Na doutrina sobre o pecado original
está presente esse elemento prévio de destino, uma solidariedade prévia, que
condiciona o homem nas suas opções pessoais e livres. Negar a doutrina do
pecado original equivaleria a dissolver a enigmática dialéctica
destino-responsabilidade pessoal a favor desta última. Todavia, afirmamos uma
vez mais, a história da qual todos participamos tem como centro Cristo, a
solidariedade na graça filial. Este é o nosso destino ou vocação divina,
inscrito em nossa humanidade desde as origens, realizado na páscoa de Cristo.
Deus cria os homens para fazer deles uma «única família» (GS 24) da qual Cristo
é o primogénito (cf. Col 1,15). Se há uma solidariedade pecadora em Adão, há
uma solidariedade bem mais radical e original, a nossa solidariedade em Cristo
no único desígnio divino de vocação filial. Daí que não se pode falar de Adão
senão como pano de fundo da acção salvífica de Cristo[5]. «A
centralidade de Cristo situa o pecado na perspectiva justa; é o revés da trama,
a obscura urdidura de uma história plena de graça e que o homem desgraçou»[6].
A
nossa solidariedade prévia, em Adão ou em Cristo, no pecado ou na graça, não
anula, antes convoca e implica, a nossa responsabilidade e a nossa liberdade
pessoais. Cabe ao homem acolher e decidir-se, em sua liberdade de escolha, por
um destino ou por outro, acolhendo no pecado a solidariedade em Adão ou pela
graça a solidariedade em Cristo. Como afirma Ruiz de la Peña[7],
«Em última análise -, e esta é a parte de razão que possuía o pelagianismo -,
será a nossa liberdade, suscitada e sustentada pela graça a que decide a nossa
sorte, elegendo entre dois existenciais: o do pecado em Adão; o da salvação em
Cristo». Ora isto convoca a responsabilidade do homem na mediação da
solidariedade em Cristo, que é destino e destino libertador mas também dom a
desafiar uma liberdade receptiva. Dentro da eclesialidade da graça, a sua
intrínseca dimensão comunional, cada um de nós é chamado a ser mediador para os
outros. Por isso o pecado não é só o afastamento pessoal de Cristo, mas também
uma ruptura da solidariedade entre todos os homens, uma ruptura da «mediação»
do bem e da graça para os demais. O pecado significa que esta cooperação na
obra de Deus, a gratuidade da mediação universal de Cristo, não foi aceite e
que, em consequência, não existe uma situação de graça que nos impulsione a
fazer o bem[8].
3. O estado da justiça original
O
estado original faz parte de um dos elementos da definição dogmática indicada
por Trento sobre o pecado original[9].
Com o estado de justiça original se afirma a radical prioridade da gratuidade
salvífica, que antecede o pecado do homem e se consumará no definitivo
escatológico, que é Cristo. É, pois, em permanente chave cristológica que deve
ser compreendido o estado de justiça original. Só assim a realidade do pecado
entrará no âmbito salvífico, como também a hermenêutica do pecado original se
esclarece na universal oferta de salvação por Cristo a toda a humanidade dela
radicalmente carenciada[10].
Propomo-nos
recuperar as intuições válidas contidas na representação tradicional das
origens da história humana. Tal não significa tomar a imagem do paraíso como
uma realidade histórica anterior ao pecado, como um lugar geográfico preciso.
Não é de fé que a situação-paraíso se tenha realizado de facto historicamente;
a graça (a amizade com Deus, o destino a participar no seu ser à escala
sobrecriatural, os meios para alcançar tal participação) pôde não ter sido
pessoalmente assumida pelo homem no primeiro momento da sua história. Todavia
estava já aí, à sua disposição, como oferta divina séria e eficaz. A discussão
sobre a historicidade do paraíso é secundária; o importante é, pois, a
afirmação da prévia oferta da salvação, o dom gratuito da divinização do homem.
Independentemente da opção humana, está a realidade da prévia oferta da
comunhão divina à disposição do homem. Este era, ao menos virtualmente, um
agraciado e a história seria história de salvação, processo de divinização
gratuita do homem, a incoar-se no tempo e a consumar-se no éschaton[11].
Desde
sempre Deus cria o homem com a intenção de divinizá-lo. Daí que a situação
originária seja já uma situação de graça, como é toda a criação. O pecado de
Adão não é o primeiro, nem a história se inicia com a opção pecadora do homem, mas
com a vontade agraciante de Deus. Desde o seu princípio, e o princípio é aqui
«a vontade agraciante de Deus», a história humana é história de salvação. Assim
se recusa toda uma concepção de graça compreendida unicamente como acção
redentora em consequência do pecado. O homem é criado, segundo a vontade
agraciante de Deus, para realizar a sua abertura transcendental a Deus
superabundantemente, mais além da sua própria estrutura ontológica[12].
A
criação é já um acontecimento de comunicação do amor gratuito de Deus, da sua
própria vida divina. Consequentemente, a encarnação de Cristo não é vista
meramente como a necessidade de resgatar o homem do pecado, mas como a
consumação do seu processo de divinização. A cristologia não é apenas
soteriologia; começa com a protologia, com a criação. E a própria criação já é
acontecimento de salvação, cristologicamente originada e destinada. A justiça
original é uma forma de cristologia incoada e em certa medida incógnita. A
encarnação tem lugar, portanto, não só para recuperar ou sanar uma situação
perdida ou deteriorada, mas principalmente para cumprir o obscuramente
prometido na teologia veterotestamentária das origens[13].
Afirma,
a este propósito, Ruiz de la Peña[14]:
«Há, pois, uma única economia de salvação, não duas (antelapsária e
poslapsária), e uma única graça, aquela pela qual Deus quis desde sempre
enriquecer a humanidade, recapitulada e divinizada em seu Filho».
A
opção humana não pode de modo nenhum frustrar o dinamismo cristológico que
impulsiona a história para a sua divinização. O que não equivale a ignorar ou a
atenuar a tragédia do
pecado, que muda radicalmente o sentido da história sem que esta deixe de ser
história de salvação. O pecado não provoca a introdução de uma nova economia
salvífica; introduz sim uma reorientação na gratuidade do amor divino, que
passa a assumir a forma concreta da misericórdia» e a «revestir-se de sofrida
paciência»[15].
A
expressão «justiça original» é irrenunciável para a fé cristã, pois com a mesma
se afirma a prioridade do dom da divinização do homem sobre a realidade do
pecado. Assim se hierarquiza a verdade da fé: a graça divina é prévia à opção
humana, o amor incondicional de Deus precede o pecado do homem. A salvação é
compreendida, fundamentalmente, como um processo de divinização
cristologicamente originado e finalizado. Esta concepção teológica permite
fazer uma leitura da história da salvação como um dinamismo progressivo a
consumar-se em Cristo. A subordinação do pecado em relação à prioridade do dom
da divinização oferece-nos uma visão positiva da história humana, que é sempre,
desde as suas origens, história de salvação[16].
CONCLUSÃO
Em
jeito de conclusão podemos dizer que só a partir de Cristo é que o mistério do
homem fica esclarecido. Em Cristo realiza-se o desígnio de Deus pensado antes
do pecado de Adão. A graça redentora de Cristo actuou, actua e actuará sempre
na história do homem, ou seja, desde o primeiro homem até ao último homem.
[1] Cf. L. F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia,
BAC Madrid 32001, p. 108.
[2] L. F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia,
p. 108.
[3] Cf. F.-X. DURRWELL, Le Père. Dieu en son mystère, Paris 1988,
p. 119.
[4] L. F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia,
p. 110.
[5] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios. Antropología teológica
especial, Sal Terrae, Santander 1991, p. 193-195
[6] J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 197.
[7] J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 195.
[8] Cf. L. F. LADARIA, Teología del pecado original y de la gracia,
p. 112.
[9] Cf. H. DENZINGER, P. HÜNERMANN, El Magisterio de la Iglesia. Enchiridion
symnolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, Herder
Barcelona 32006, nº 1511. O Concilio de Trento apresenta três elementos:
o estado de justiça original e a perda dos dons da imortalidade e da
integridade. Aqui centraremos sobre um dos elementos: o estado de justiça
original.
[10] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 163.
[11] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 161.
[12] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 162.
[13] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 162.
[14] J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 163.
[15] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 163.
[16] Cf. J. L. RUIZ de la PEÑA, El don de Dios, p. 164. Vários
outros autores assumem esta posição: J. BUR, O pecado original: o que a Igreja de fato disse, [Tradução
de Carlos Felício da Silveira] Editora Santuário, Aparecida 1991 pp. 65-68; L. F. LADARIA, Teología
del pecado original y de la gracia, pp. 41-42; W. SEIBEL, «El hombre,
imagen de Dios. Su estado original», in J. FEINER - M. LÖRHER (ed.), Mysterium
Salutis, II, Madrid 21977, p. 642.